HEBREUS - MOISÉS

Há séculos, algumas tribos nômades da Palestina – que ali chegaram das margens do rio Eufrates – abandonaram o solo semi-árido daquele país e foram ao Egito, fugindo da fome. Mas os egípcios escravizaram-nos. Diz a Bíblia que os submeteram a inspetores de trabalhos forçados para os oprimirem com obras penosas, e que lhes amarguraram a vida.

A opressão chegou ao auge quando governava o Egito provavelmente o faraó Ramsés II, da 19.ª dinastia, no século XIII antes de Cristo. Por sua ordem, os escravos construíram-lhe uma cidade que recebeu seu nome. Ele simbolizava a divina ascendência do monarca: Ra-mses — ou Ra-moses — significava que o faraó era filho (moses) do deus Ra. Mas, de quem seria filho um outro homem que passaria à História apenas sob o nome Moses ou Moisés? Filho de um homem da tribo de Levi que tomara por esposa uma jovem da mesma tribo — era portanto israelita ou hebreu —, como quer a Bíblia? O significado do nome Moisés desafia até hoje os filólogos. A explicação bíblica — mo = água + usheh = salvar — isto é: salvo das águas, é popular. Então era egípcio? Talvez de fato seja melhor a etimologia egípcia: msi = dar à luz, de onde: mses = filho.

Diz a Bíblia que Moisés, salvo das águas do Nilo, foi educado como nobre pela própria filha do faraó, em ambiente palaciano. E será este nobre — ao menos pela educação — que transformará um punhado de escravos hebreus num grupo nacional coeso e livre. Antes, casará com a filha de um sacerdote pagão, em cuja terra — Madiã — lhe aparecerá Deus, para santificar sua missão. E, sendo Deus onipresente no tempo e no espaço e inacessível ao homem, apareceu um dia a Moisés, dizendo: "Eu Sou Aquele que Sou." E o nome dele passou a ser o impronunciável termo JHVH, chamado o tetragrama inefável, que deu em português Javé, ou, menos corretamente, Jeová. E este nome significa a eternidade de Deus, pois HVH é o infinitivo hebraico do verbo ser e o prefixo J transpõe os verbos hebraicos para o futuro. Assim, Deus é o Ser para todo o sempre. Apesar disto, foi preciso que Deus revelasse sua essência divina através de vários prodígios, transformando um bastão em serpente e tirando a lepra com um toque, para que Moisés aceitasse a sua missão.

O faraó, porém, acreditava em Ra, não em Javé, e não pretendia perder mão-de-obra tão abundante, qualificada e barata como a dos hebreus. E ignorou a solicitação de Moisés. Como o ignoraram os próprios hebreus. Estavam submetidos demais, para apreciar o desconhecido sabor da prometida liberdade. Tinham medo demais de seguir um líder revoltoso. E jamais tinham ouvido falar no Deus sob tal nome: Javé. De fato, não fora sob este nome que Deus aparecera a seus antepassados, Abraão, Isaac e Jacó. Mas nada podia demover os planos de Deus — nem sequer a desconfiança dos que eram, no fundo, os mais diretamente interessados. A humanidade tinha que entrar em nova fase de sua história através da eliminação da escravidão como sistema de convivência humana. A libertação dos hebreus não podia deixar de se concretizar.

Dez pragas convenceram o faraó de que deveria consentir na partida dos seus escravos. As águas do Nilo converteram-se em sangue, os peixes do rio morreram e não houve mais água potável no Egito. Depois, as rãs, os mosquitos e as moscas invadiram o país. Depois, peste e úlceras atingiram os egípcios. A seguir, caiu granizo. Vieram os gafanhotos e devastaram a agricultura. Caíram espessas trevas e transformaram o dia em noite.

Mortandade de peixes, enxames de insetos e epidemias eram flagelos que com certa periodicidade atingiam várias regiões do Oriente Médio e particularmente o Egito. Mas a seqüência e a extensão destes fenômenos naturais podiam, realmente, ser aproveitadas como intervenção divina em prol dos escravos. E, de qualquer modo, na última praga o elemento miraculoso está presente: morreriam todos os primogênitos egípcios se o faraó não libertasse os hebreus. Foi então que o faraó chamou Moisés e disse: "Levantai-vos e saí do meu povo, vós, filhos de Israel. Ide, adorai a Javé como pedistes."

Desde tempos imemoriais, os povos primitivos louvavam os eventos da natureza. Choravam o desaparecimento do sol, quando começava o inverno. E regozijavam-se com a volta à vida, no início da primavera. Na realidade, a conquista da liberdade pelos escravos simbolizava o retorno à vida — à vida digna, no pleno sentido da palavra. Essa libertação coincidia com a primavera: ocorreu no mês hebraico nissan, que corresponde mais ou menos aos fins de março ou inícios de abril, quando na bacia do Mediterrâneo começava a primavera. Assim, fundiam-se numa só festa a renovação da natureza e o renascimento de Israel, como eram chamados os hebreus. E na Páscoa, instituída então, fundiram-se as tradições religiosas dos povos agrícolas e pastoris e as tradições pré e extra-israelitas com as de um grupo que seria unificado não mais pelo medo ante a opressão, mas através dos conceitos religiosos que o identificariam e o transformariam em nação. Páscoa — em hebraico, Pessah — significa passar além. Passar além geograficamente e passar além simbolicamente, da escravidão à liberdade. Essa Páscoa foi ampliada pelo cristianismo com sentido novo. Mas os judeus até agora seguem a tradição descrita no livro do Êxodo, tradição de mais de 30 séculos.

O êxodo

Na fuga do Egito, os hebreus atravessaram o Mar Vermelho. Evidentemente, existiam várias pistas de caravanas que conduziam do Egito, através da península de Sinai, à Palestina. Não era preciso atravessar o Mar Vermelho para ali chegar. Mas, talvez para despistar os egípcios, que decidiram recapturar os escravos em fuga, os hebreus utilizaram o caminho incomum, pelas costas do mar, no momento de maré baixa. Soprava o vento leste, afastando mais ainda as águas da rota dos fugitivos. Mas cessou de soprar quando se aproximavam os egípcios. A maré alta os cobriu.

Houve algum acidente, historicamente real? Houve um milagre? A resposta só pode conjugar ambas as perguntas, pois, por mais lógico que pudesse ter sido o fato, não deixou de ser miraculoso. Deus estava ainda uma vez presente, já que permitiu aos hebreus escapar a seus opressores. A primeira barreira fora transposta. Agora, Moisés cantava um hino de louvor a Javé, e Miriam, sua irmã — nome que se latinizaria para Maria —, tomou um tamborim e bailou de alegria. Começou a grande caminhada em direção a Canaã, de onde, séculos antes, saíram algumas tribos nômades fugindo da fome. Agora voltavam à semi-aridez do país, não mais temendo os múltiplos povos que ali habitavam e que iriam defender-se, sem dúvida alguma, contra aquele grupo estranho que vinha de longe para tomar-lhes a terra em nome de um Deus que não conheciam.

Diz a tradição que foram 600 mil os hebreus fugidos do Egito. Sem dúvida, não eram tantos; deve-se contar com o exagero tipicamente oriental e outros fatores. Mas em hebraico, no texto original, consta: como se fossem 600 mil. Isso poderia caracterizar antes a força e o ímpeto que o número dos fugitivos.

Misturados com escravos de outras origens, sob a liderança de Moisés, os hebreus penetravam no deserto rochoso que cobre a península de Sinai. Um deserto despovoado, árido, quente. Faltava água. Faltava pão. O calor era insuportável. A travessia, árdua. E, na hora da angústia presente, os hebreus esqueceram os sofrimentos passados. E se queixaram. Por isso, como castigo, 40 anos vagariam pelo deserto, até que morresse toda a geração escrava, para que só os nascidos na liberdade pudessem entrar na Terra Prometida. O próprio Moisés não escaparia. Morreria antes de atravessar as fronteiras do solo que Deus jurou entregar, para sempre, aos descendentes de escravos com os quais forjara uma nação. A Bíblia descreve minuciosamente a odisséia dos hebreus, suas andanças pelo deserto desconhecido, onde só maná — planta da família das Umbelíferas, conhecida fora da Bíblia como coentro —, codornizes e pão ázimo lhes serviam de sustento. Mas foi naquelas circunstâncias que aconteceram fatos que iriam influenciar a

humanidade por séculos a fora e ainda hoje têm profundo significado.

No monte Sinai, Deus revelou-se ao povo que escolhera. Revelou-se a homens livres. E só a homens livres, isto é, conscientes e responsáveis perante Aquele que lhes outorgou a força da própria responsabilidade, é que Deus revela os Dez Mandamentos, e depois, através de Moisés, uma variedade de leis que passam a regular as relações entre os homens. São leis antigas, de gente rude e ainda primitiva. Mas já são leis que obrigam ao dono libertar seu escravo no sétimo ano de cativeiro, pagando-lhe uma parcela da riqueza que ele, escravo, gerara com seu trabalho. Leis que instituem não apenas o respeito pela vida do próximo — a morte será punida com a morte — mas até o respeito pela liberdade alheia e pela dignidade dos pais. "Quem tiver raptado um homem, deverá morrer. Quem amaldiçoar seu pai ou sua mãe, será punido com morte." É uma legislação que institui o respeito aos bens alheios, que impõe confiança mútua e pune a quebra dessa confiança. É uma legislação que institui o repouso semanal mesmo para os escravos e forasteiros que vivessem junto com hebreus, e até os animais. É um compêndio de leis que garante ao acusado justiça e ao perseguido, refúgio sagrado. Decerto, ao instituir essa legislação complexa, Moisés baseava-se em exemplos egípcios e babilônicos. Mas soube emprestar ao conjunto de leis uma aura de presença divina. É preceito bíblico, por exemplo, lavar as mãos antes da refeição, pois deve ser pura a mão que leva à boca o sustento de procedência divina. Mas Moisés sabia também que, sem o uso do nome de Deus, dificilmente poderiam ser impostos preceitos de higiene a um povo primitivo e bárbaro, que mal tinha água para beber e considerava luxo lavar as mãos. As leis mosaicas, em seu conjunto, foram a base não só da evolução do judaísmo mas também, em conseqüência, do nascimento do cristianismo. Tais leis, que na Bíblia vêm sob o nome e responsabilidade divinos, foram sofrendo, através dos tempos e exigências de novos condicionamentos, alterações, adaptações e acréscimos consoante a situação concreta do povo.

O cântico e o pranto

Toda a vida de Moisés — seus atos, seus feitos, suas leis — é descrita nos quatro livros do Pentateuco: Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Aliás, a autoria de todo o Pentateuco lhe é atribuída pela tradição. De qualquer modo, o último livro do Pentateuco termina com dois poemas atribuídos a Moisés: o seu último cântico e a sua última bênção. Ambos os poemas são escritos em hebraico muito antigo e de tradução extremamente difícil. Depois de entoar esses dois hinos, "subiu Moisés das planícies de Moab para o monte Nebo, até o cume do Fasga, em frente a Jericó. De lá Javé mostrou-lhe todo o país". Só pôde vê-lo de longe, não lhe foi concedido penetrar nele, pois também nascera no cativeiro. "Moisés tinha 120 anos quando morreu; sua vista não se havia extinguido nem se havia esgotado seu vigor. Os filhos de Israel prantearam Moisés durante 30 dias nas planícies de Moab, depois terminaram os dias de pranto por luto de Moisés. Não mais surgiu em Israel profeta igual a Moisés, a quem Javé conhecia face a face, e que realizasse, na terra do Egito, contra o faraó, todos os prodígios e sinais que Javé fez para todos os seus servos e toda a sua terra, com mão forte e com prestígio amedrontador." Assim termina o Pentateuco, livro-base da religião que se chama, muitas vezes, de mosaica. Mas, na realidade, Moisés não foi seu fundador. Ele apenas a comunicou, coordenou, cimentou através das leis. Para os judeus, era apenas um líder. Para o cristianismo, sua pessoa prefigurava, de algum modo, a Cristo.

A morada de Deus

No Egito os deuses tinham seus templos e os hebreus os conheciam. Também conheciam os suntuosos palácios em que residiam os deuses babilônicos. Mas — talvez por ainda serem nómades, talvez pelo próprio conceito de Deus — não criaram uma morada fixa para o seu Deus. O Tabernáculo, que levavam consigo, simbolizava a onipresença divina. E, mesmo quando o armavam no lugar de repouso, a Arca da Aliança —que centralizava a presença de Deus — nada continha além dos Mandamentos. Assim, Deus estava presente entre hebreus pela lei que tentava transformar o comportamento dos homens. Mesmo de pois, quando, estabelecidos na Palestina, fizeram de Jerusalém sua capital e ali construíram o Templo, os judeus nada colocariam no Santo dos Santos. Não era preciso definir a casa de Deus, pois Ele estava em todos os lugares. Não era possível, pois, simbolizar Sua presença de maneira visível. Este conceito de Deus possibilitou a sobrevivência da religião mosaica mesmo após a destruição do Templo, e mesmo depois da dispersão dos judeus. E, pelo fato de que todos eram iguais, a função do Sumo Sacerdote tornou-se dispensável. A religião não precisava ser dirigida, nem centralizava. Ela existe na fé individual dos crentes tal como foi apresentada por Moisés.

Toda religião tem seu símbolo. A religião mosaica também o tem. Apesar das aparências, não é seu símbolo a assim chamada Estrela de Davi, mas o candelabro de sete braços. A sua instituição é muito antiga. O candelabro é descrito nas leis do livro Levítico, o terceiro do Pentateuco. E continua servindo de símbolo religioso até os dias de hoje. O candelabro da ilustração está no Arco de Tito. É o candelabro que as legiões romanas retiraram do Templo, ao destruí-lo, e levaram a Roma, onde o esculpiram no Arco erguido em comemoração à vitória sobre a Judéia rebelada, "Judaea capta", como diziam as moedas cunhadas na ocasião. Hoje, o candelabro é usado como brasão do Estado de Israel, que se julga herdeiro da antiga Judéia.